quinta-feira, 26 de março de 2015

Os Trigêmeos

Crédito: Quisque
Numa manhã, nasceram trigêmeos. Eram bebês, duas meninas e um menino. Eles nasceram com dons excepcionais. Para começar, nenhum deles chorou na hora do parto, nasceram sorridentes, o que é, certamente, bem incomum. Quem chorou foi a mãe, antes de falecer, mas isso foi um pequeno detalhe. Até o choro da progenitora foi de alegria, combinando, harmonicamente, com o riso dos três lindos bebês. Ela partiu feliz por ter originado a vida de criaturas tão esplêndidas e o pai também não sentiu muito a morte dela, pois, afinal, havia ganhado três belos seres em troca. A culpa pela morte da mãe nunca pesou nos três, pois eles, desde sempre, foram conscientes de como o mundo funcionava. Cada um partia na hora que tinha que partir, essa era a regra.

Aos três anos, as três crianças já demonstravam ter habilidades sobre-humanas; elas, de pele bem clara e cabelos negros, ele, de pele bem clara e cabelos loiros. A primeira, que se chamava Quivivi, tinha o dom de deixar as pessoas mais felizes com seu sorriso, e tudo o que ela tocava se enchia de alegria e felicidade. Se ela colocava a mão na terra, por exemplo, a terra, feliz, acelerava o desenvolvimento das raízes e uma vastidão de plantas e árvores cheias de frutos cresciam em ritmo acelerado.

A segunda menina, Unideta, tinha um talento diferente. Ela também sorria bastante, e as pessoas se sentiam confortáveis em sua presença, porém, essa felicidade estava mais ligada ao fim do que ao começo. Por exemplo, se ela colocasse a mão na terra, ela, feliz, sentiria que cumpriu bem o seu papel e terminaria, junto com todas as plantas ao redor, suas atividades, buscando o repouso eterno. As flores, plantas e árvores murcharam e morriam em sua presença, mas felizes, por terem, enfim, encerrado suas atividades, podendo partir para o repouso eterno.

As irmãs se davam muito bem, apesar de tudo, e uma não conseguia influenciar a outra em nada, só quem estava a seu redor. O irmão delas, porém, tinha um outro talento notável. Ele não concedia vida, nem a retirava, ele simplesmente sabia como convencer as irmãs a fazer o que era certo. Por vezes, ele impedira Quivivi de se aproximar de um ladrão e conceder a ele a felicidade, sendo que era pela vida de crimes e de assassinatos que ele aprenderia valiosas lições de humanidade. Ele também ajudou Unideta, em outra ocasião, a pensar melhor a respeito de se aproximar de uma criança que caíra da bicicleta. Ele a fez entender que, mesmo que a criança estivesse sentindo dor e sangrando, aquele não era o momento de ela partir, pois ainda tinha uma longa vida pela frente.

Os anos foram se passando, e Dovine, o menino, se tornou um homem, assim como Quivivi e Unideta tornaram-se mulheres. Por todos os anos que se passaram, ele buscou ajudar as duas a selecionar bem os momentos em que deviam agir, as pessoas, os lugares e os animais a quem deviam beneficiar, e tudo se saía absurdamente bem. Um dia, o pai dos trigêmeos adoeceu e ficou de cama. E esse acontecimento culminou em uma grande discussão.

Quivivi, como era de se esperar, queria curar o pai, queria que ele se enchesse de alegria e felicidade, levantasse da cama, e voltasse a ser carpinteiro, como sempre fora. Porém, Unideta discordava dos planos da irmã, pois via que seu pai estava sofrendo e queria que ele se enchesse de alegria e felicidade, fechasse os olhos e deixasse seu corpo, rumo a eternidade. Essa foi a primeira vez que Dovine, que, até então sempre soubera resolver as discordâncias entre as irmãs, viu-se sem saber qual atitude tomar. Ele compreendia Quivivi, e realmente não achava que era a hora de seu querido pai partir, entretanto, ele também sabia que Unideta tinha sua razão, e não suportava a ideia de ver seu progenitor sofrer daquele modo.

Foi então que ele pediu um tempo às irmãs, para pensar na situação, avaliá-la melhor. Pela primeira vez, ele se separou das duas e foi até uma colina próxima de casa, para refletir. Ele olhou para o céu, para os jardins, para os bichos, para as pedras. Pensou o que sua mãe, se viva, faria; pensou o que seu pai, se consciente, faria. Sem chegar a uma conclusão, voltou para casa, afim de tomar a decisão a partir do que visse nos olhos de seu pai. Quando regressou ao quarto, porém, uma cena lhe assombrou: Unideta e Quivivi se estapeavam sobre o leito do pai. As duas nunca tinham brigado, e ele ficou alguns segundos sem reação frente a cena tão horrível.

Ele se colocou no meio das duas, que não podiam interferir nas sensações uma da outra, como costumavam fazer com as pessoas. Normalmente, elas também não podiam interferir nas sensações de Dovine, que, no geral, era quem permeava  as atitudes das duas; porém, frágil como estava, o irmão se deixou abater pelas cargas que as duas utilizavam, até então sem efeito, em seus tapas, e acabou pegando algumas daquelas energias para si enquanto tentava apartá-las. Ele sentiu uma alegria incontrolável de viver, procriar, seguir em frente, ao mesmo tempo em que queria, incontrolavelmente, morrer para ser feliz no céu.

Meses se passaram e Dovine despertou na cama que, um dia, velou a morte de sua mãe e, há pouco, velara a doença de seu pai. Quivivi e Unideta estavam a seu lado, preocupadas, mas ficaram muito felizes em ver que o irmão acordara. As duas irmãs estavam diferentes: apesar de suas peles continuarem brancas como as nuvens, seus cabelos haviam perdido a cor, e estavam loiros, meio desbotados. Elas também informaram a Dovine que ele também estava diferente: seus cabelos passaram a ser negros como a noite, o que ele compreendeu imediatamente.

O pai havia sido levado para uma cama ao lado, continuava vivo, porém, estava fraco demais, em um sono sem fim. Dovine se levantou e as duas irmãs loiras o encararam, curiosas para saber o que ele decidira a respeito de sua vida. Ele nem precisou de explicações para descobrir que suas irmãs haviam perdido seus dons e não podiam mais dar vida ou tirar a vida. Agora era ele, e só ele, quem poderia decidir.

As duas tentaram se aproximar dele por semanas, enquanto o homem pensava de que forma salvaria seu pai, mas ele se afastava, temendo que elas, agora, tivessem o seu dom de influenciar de forma feliz em suas decisões. Depois de reconsiderar muitas vezes o que deveria fazer, Dovine optou, por fim, a reaproximar-se das irmãs.

Ele marcou um encontro com as duas, em uma campina, não muito longe dali, onde explicou que, em trio, resolveriam a situação. Quivivi e Unideta chegaram juntas, de mãos dadas, antes de Dovine e se colocaram a procurá-lo. Porém, ambas caíram em uma armadilha:um buraco muito fundo, disfarçado por folhas secas de salgueiro. As duas caíram, caíram e caíram, e seus gritos foram ouvidos por gerações.

A parte curiosa é que não foram apenas as duas que seguiram com a queda por tanto tempo. Dovine, satisfeito por seu plano ter funcionado, saltou logo em seguida, mas não gritou, pois sabia muito bem o que estava fazendo. Ele percebeu que não era direito de ninguém decidir nada, perceber nada ou agir sobre nada que fosse maior do que si mesmo, então, achou que seria melhor que ele e as irmãs ficassem impossibilitados de usarem seus dons durante toda a eternidade, para que o mundo encontrasse seus próprios caminhos de funcionar.

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