segunda-feira, 1 de junho de 2015

A Casa Que Ainda Não Caiu

Desenho: Quisque
 Há pouco tempo, havia uma casa, no alto de um morro, repleto de outras casinhas. Embora essas outras casinhas fossem coloridas, pareciam apenas caixinhas de fósforo comparadas à casa que ficava no topo, que chamava muito mais atenção, até mesmo do alto - da perspectiva das gaivotas. Entretanto, ela chamava atenção não por ser bonita, ou maior, mas sim por ser podre, pichada, com telhas faltando, janelas quebradas e falta de árvores ao redor.
 Mas o que mais era notável naquela casa no alto do morro era o fato de ser tombada para o lado esquerdo. Torta, ela estava inclinada como um galho que envergou, como se muitos e muitos ventos a tivessem forçado a ceder, mas não totalmente. Apesar dos pesares, ela ainda resistia, ela ainda estava ali, de pé, male, male. 
Na casa vivia um monstro, o único marrom em um vilarejo composto por monstros azuis, amarelos e verdes.  O monstro marrom não era diferente só na cor: também tinha hábitos diferentes dos demais. Gostava de tomar chá ao invés de refrigerante, gostava de tricotar ao invés de ler as notícias do dia e preferia mil vezes uma cama elástica do que um sofá. Enquanto os outros comiam sanduíches plastificados que saíam de máquinas de sanduíches plastificados, ele se contentava com um ensopado que fazia à base dos matos que arrancava de seu jardim descuidado, mas se sentia satisfeito com as iguarias que preparava, embora todos estranhassem. 
 De quatro em quatro dias, todos os monstros do morro se reuniam no morro vizinho, para festejar o dia das cores - onde todas os azuis, amarelos e verdes eram prestigiados em um desfile de danças, esportes e quitutes. O marrom não era homenageado e, por isso, o monstro que vivia na casa que ainda não caíra não se sentia à vontade de participar. Ficava ali, em seu jardim, colhendo os matos para seu modesto jantar. 
 Era bastante incômodo quando começavam as festividades no morro vizinho, pois o monstro marrom era impedido de fazer qualquer coisa com tranquilidade enquanto a algazarra acontecia. Eram gritos, risadas, fogos e pedras o dia todo, e ele ficava acoado dentro do próprio lar, desnorteado, sem saber o que fazer, sem conseguir se concentrar nas coisas mais banais - como se lavar ou lavar o chão.
 O monstro marrom vivia triste sozinho, mas sabia que não podia dar grandes saltos em sua vida social, uma vez que era um monstro marrom e não azul, amarelo ou verde. Ele gostaria de juntar todas as cores um dia, ou, pelo menos, passar a ser homenageado também no dia das cores. Não seria nada mal.
 No dia seguinte à festa das cores, o monstro marrom não havia dormido nada bem, tivera insônia, e o barulho não ajudou nem um pouco. Porém, a noite em claro foi benéfica, pois ele teve uma ideia. Não era uma dessas ideias que provavelmente movem montanhas ou mudam a cor dos mares, mas, ainda sim, era uma ideia.
 Ele vasculhou sua casa inteira à procura dos objetos de decoração mais bonitos e cintilantes que pudesse encontrar, e desmontou sua cama elástica para guardá-la junto dos artefatos achados, dentro de um saco grande e roxo. Uma fez satisfeito com o número de bugigangas, ele foi arrastando esse pesado saco para fora de sua casa, em direção ao morro vizinho, onde havia acontecido a festa na noite anterior.
 Fazia muito tempo que ele não saía da casa que ainda não caíra, e ele se sentiu muito bem quando o vento passou por seus pelos marrons, fazendo-os dançarem alegremente. Se sentiu, como não antes, parte do mundo, e não num mundo à parte. Ele chegou no topo do morro vizinho com um sorriso no rosto, seus dentes pontiagudos nunca estiveram tão pontiagudos!
 Os vestígios da festa da noite anterior ainda estavam lá: bexigas das cores azul, amarelo e verde, docinhos espalhados pelo chão das cores, azul, amarelo e verde, tintas por todos os lados, das cores azul, amarelo e verde. Além disso, havia monstros azuis, amarelos e verdes espalhados pelo gramado, em sono profundo. Ninguém havia voltado pra casa, mas o monstrinho marrom não achou que aquilo podia ser um problema.
 Ele foi até o centro do palco de madeira que fora armado da festa da noite anterior e começou a acrescentar alguns detalhes na decoração. Enfeitou o palco com bexigas marrons, doces marrons e derrubou sobre ele alguns litros de tintas marrons. Ele também trouxe uma infinidade de bichos de pelúcia, canivetes, dados, dedais, candelabros, vasos e tudo o que era marrom de sua residência.
 Depois de posta a decoração, ele pegou sua vitrola e colocou num canto do palco, selecionando um disco marrom e deixando-o pronto para ser arranhado. A vitrola começou a reproduzir uma música à base de banjo e sanfona, e o monstro marrom começou a dançar de um lado pro outro do palco, em passos que pareciam tanto terem sido coreografados, quanto fazerem parte de um ridículo improviso de iniciante.
 Os monstros azuis, amarelos e verdes, até então desacordados, acordaram devido o barulho e circularam o palco para entender o que estava acontecendo. "O que está acontecendo?", perguntou um deles. "Hoje é o dia do marrom", anunciou o monstro marrom.
 Os monstros de outras cores começaram a questionar uns aos outros a existência do dia do marrom, parecia ilógico. Porém, dois monstros verdes ficaram encantados com a dança do monstro marrom e se puseram no palco para dançar com ele. Surpreso pelo sucesso de sua dança, o monstro marrom, uniu suas garras às dos monstros verdes, e os três ficaram ali celebrando o dia do marrom de forma bastante exótica e inovadora.
 Vários monstros que não eram aqueles que estavam em cima do palco se sentiram ultrajados. "Como assim dia do marrom?", questionavam, estupefatos. Alguns foram embora, outros ficaram ali, querendo discutir. Um monstro azul e um amarelo subiram no palco, juntando-se aos dois verdes e ao único marrom.
 De certa forma, os festejos do dia do marrom foram um sucesso e, a partir daquele dia, o monstro marrom passou a se encontrar constantemente com seus dois amigos verdes e também com seus amigos azul e amarelo. Porém, ele não sabia que isso duraria pouco.
 A maioria dos monstros da cidade achava um absurdo existir o dia do marrom e mais absurdo ainda monstros que não fossem marrons celebrarem o dia do marrom, que, por si só, já era um absurdo existir. Por isso, decidiram banir da cidade todos os monstros que se atrevessem a demonstrar qualquer interesse pelo dia do marrom.
 Assim, o monstro marrom perdeu dois de seus amigos, um amarelo e um verde, que ficaram com medo, ou, talvez, sem vontade de prosseguir com aqueles encontros perigosos. Porém, para a sorte do monstro marrom, restaram-lhe dois amigos: um azul e um verde.
 Cego pela deslealdade dos outros amigos e pelo mal que causou à cidade, o monstro marrom trancou-se na casa que ainda não caiu, ignorando as cartas que os banidos monstros azul e verde lhe mandaram. A casa foi tombando um pouco mais a cada dia durante aquele período, e o monstro marrom decidiu que, em quatro anos, não faria a celebração de dia do marrom novamente. Aquilo não existia, não precisava existir, ele que quis que existisse, então, decidiu não existir.
 Passado algum tempo, os banidos monstros azul e verde bateram à porta do monstro marrom. Ele ficou intrigado em ver que eles ainda se interessavam por ele e também ao perceber que havia ignorado uma correspondência do tamanho de um lixinho de banheiro. Os monstros banidos expressaram o desejo de morar com o monstro marrom na casa que ainda não caiu e prometeram que fariam o possível para endireitá-la. E assim fizeram, os três, e os dias, apesar de cheios de nuances, jamais deixaram de ser azuis, verdes ou marrons. 

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