domingo, 16 de fevereiro de 2014

Se Morrer, Passe o Controle

Aquele foi o parto mais demorado da história, chegou até a sair no jornal. Dona Maria da Perpétua Desgraça não aguentava mais fazer força para que a criança saísse logo de vez. A equipe que trabalhava no parto estava desesperada, estavam há praticamente uma semana realizando aquele nascimento e nada da cabeça do bebê sair. Maria se negara terminantemente a aceitar a cesariana, porém, seus gritos desesperados, insistentes e ansiosos faziam com que todos os médicos se revezassem para passar cada vez menos tempo exercendo o ofício, hora jogando baralho, hora tomando café ou assistindo a um pouco de futebol na sala de diversões, que ficava convenientemente ao lado.

Na madrugada de uma segunda-feira, nasceu, enfim, José, que a mãe, carinhosamente, embora esgotada, apelidou de Lerdinho. O problema foi que essa foi a primeira palavra que ela disse ao nascer e os médicos, aliviados com o fato de que aquele bebê enfim pôs a cabeça pra fora da mãe, estavam tão extasiados e cheios de cafeína no sangue que acabaram registando o menino como Lerdinho da Perpétua Desgraça.
E assim foi. Como era de se esperar, Lerdinho da Perpétua Desgraça não tinha muitos amigos na escola, e não era só porque seu nome causava riso até nas professoras. Ele era mais alto que os demais, mais magro, mais descoordenado, e tinha pernas tornas, que, mesmo sendo compridas, dificultavam muito suas corridas na aula de educação física. O resultado era que ele nunca era o escolhido para o time dos "bacanas", sempre jogava no time dos "restantes", onde ficavam os gordos, os asmáticos, os catarrentos e as meninas.
Foto: Diolinux
Mesmo entre os "restantes", ele se sentia só, porque os gordos gostavam de se juntar para comer e engordar ainda mais, os asmáticos gostavam de falar sobre suas bombinhas e comentar o quanto era interessante experimentar a do outro, os catarrentos gostavam de fazer cuspe à distância, e coisas do tipo, e as meninas gostavam de falar sobre coisas de meninas. Em síntese, Lerdinho era solitário e gostaria de ter um amigo.

E um dia ele enfim fez um amigo. Certo dia, depois de alguns anos naquele "insuportável calabouço", que era como costumava chamar a escola, surgiu um aluno novo, que adorava todo o tipo de jogo virtual, de todo o tipo de console. Lerdinho simpatizou com Mario, mas não pelos motivos toscos que seus colegas encontraram. Lerdinho não ligava que o novato tinha uma tevê gigantesca em casa, nem se importava com seus milhares de cartuchos de jogos divertidíssimos e, tampouco, sabia o que eram os "Games X", dos quais o pessoal tanto falava na escola. Ele gostava apenas do fato de Mario ser quieto e concentrado nas aulas, além de, é claro, sempre dar um jeito de afastar os colegas interesseiros que insistiam em se auto-convidar para jogar videogame na casa do jovem. O viciado em jogos, entretanto, teve a mesma percepção de Lerdinho, embora errada, e demorou algumas semanas para perceber que o mais zoado da turma queria, na verdade, era ser seu amigo mesmo. Quando sua mente se desligou dos fios e recebeu uma iluminação natural, ele convidou Lerdinho para ir jogar videogame em sua casa, e o outro, feliz por finalmente fazer um amigo.

Depois de uma longa discussão com Maria da Perpétua Desgraça, Lerdinho acabou conseguindo sair de casa e chegar, quase que pontualmente, na casa de seu colega de escola. Para a surpresa dele, Marta Tec, a mãe de Mario, era extremamente sorridente e o tratou super-bem, servindo biscoitos em forma de cogumelos coloridos assim que se sentou no sofá da sala espaçosa. Na hora de jogar videogame, Mario chamou seus doze irmãos para jogar também, e eles sentaram ao redor dele e de Lerdinho para que começasse a tarde de diversão, enquanto a mãe providenciava mais quitutes na cozinha e o padrasto trabalhava para bancar tudo aquilo.

Lerdinho, então, percebeu que só haviam dois controles para catorze jogadores, e ficou se perguntando como é que iriam dividir o tempo de jogo de cada um. Em resposta, mesmo que ele não tenha chegado a expor sua questão na sala de seu único amigo, Mario disse o seguinte: "Se morrer, passe o controle". Aquela instrução parecia não fazer sentido algum, mas logo fez. Mario e Lerdinho começaram a jogar como uma dupla de personagens investigadores, que tinham que encontrar pistas sobre quem estava matando quem ali naquele ambiente aterrorizante, e todos os irmãos achavam emocionante assistir àqueles momentos de tensão simulados por computador. Lerdinho, entranto, ficou um pouco nervoso, pois, afinal, nunca havia jogado nada, nunca sobrara dinheiro na casa dele para poder comprar um videogame: talvez ele preferisse só observar o jogo, já que pediu umas cinco vezes para que Mario explicasse o que o "x" fazia, porque é que "bolinha" não funcionava se não fosse pressionado junto com o "quadrado", e coisas do gênero. Seu raciocínio lento mais uma vez o entregou e o impediu de avançar rumo ao caminho de ser uma pessoa descolada e divertida: ele morreu no jogo e, então teve que passar o controle para a irmã de Mario, que era muito mais habilidosa que ele, mesmo que três anos mais nova. O jogo seguiu e Lerdinho não chegou a encostar no controle novamente, mas ficou feliz de ver Mario se divertindo com seus doze irmãos que dificilmente morriam nas fases do jogo.

Teve uma outra vez, porém, que Mario convidou novamente Lerdinho para uma tarde de entretenimento eletrônico, e este, receoso, mentiu dizendo que estaria ocupado. O amigo ficou um pouco desapontado, mas acabou entendendo, e Lerdinho ficou ainda mais desapontado, porque não queria perder amigos, mas também, não queria ficar novamente assistindo os outros jogarem enquanto seria mais uma vez em sua vida considerado lento, burro e atrapalhado. Os dois acabaram encontrando outras coisas para fazer juntos, com o tempo, e continuaram sendo amigos. Porém, Lerdinho só teve coragem para voltar a jogar videogame contra seu amigo quando começou a trabalhar, comprou o seu console e praticou muito em casa. Com a baita grana que os dois ganharam, anos mais tarde, desenvolvendo soluções para htmls complicados de alguns sites, Mario Tec comprou uma casa onde pudesse respirar melhor longe de seus muitos irmãos e Lerdinho da Perpétua Desgraça, enfim, mudou de nome no cartório. E ele chegou a tempo, antes que o lugar fechasse.

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