domingo, 2 de julho de 2017

Insone

Tem uma hora da madrugada que uma percepção estranha invade meus sentidos. Não é ansiedade no amanhã, nem saudade no ontem, muito menos euforia no presente. É como se a poeira do ar ficasse mais visível e eu passasse a ver a vida ainda mais sem filtro. A ausência das pessoas só deixa a presença de uma caneca de café mais forte, mais intimidadora. É como se ela tivesse vida também.

Mesmo sabendo que é um momento péssimo para ver fotografias de momentos felizes, eu as vejo. Encaro aqueles sorrisos de ontem como se fossem de mil anos atrás. Ou de uma outra vida. A constatação de que tudo aquilo já acabou é aterradora. Porém, não sinto que quero voltar para dentro da foto. Não quero mais passado e nem a mentira. Não quero aquele fragmento de algo que não foi bem daquele jeito. A foto distorceu tudo. Eu não sorri somente naquele dia. Senti outras coisas que não couberam na foto. Coisas que não saíram na foto.

A solidão está presente, e é bem-vinda. Ela deposita suas garras afiadas em meus ombros cansados, mas não os machuca. Ela sussurra em meu ouvido o que eu já sabia. E não já mais tristeza em minhas reações ao que ela diz. Há um conformismo sombrio e poético. Há sorriso no canto de meus lábios que não escapa. E há dúvida. 

Quando todos se desligam, deitam, voam, somem, deixam de existir por algumas horas, eu ainda vejo dificuldade em me tirar da tomada. Fico ali, consciente de minha vida. É a hora em que mais me sinto vivo. Mais do que quando estou em linhas pré-definidas, em rotas traçadas por mim, mas antes traçadas por outros especificamente para mim. É bastante devastador perceber que só eu participo desse momento. Que só eu estou com esse grande ponto de exclamação dentro da garganta. Que só eu não parti para as nuvens para depois voltar, acordar disposto, tomar um bom café da manhã e começar um dia de dietas saudáveis, academias, fotos sorridentes e passeios divertidos. 

Fonte: Lifestyle-Framar
Já há algum tempo, perdi a vontade de participar socialmente de uma porção de coisas. Desisti de tentar convencer os outros de que vivo maravilhosamente bem. Tudo parece ter perdido o sentido. E eu percebo ainda mais isso na vivacidade desse momento quieto, tranquilo e morbidamente gostoso. Acostumei-me à minha solidão cedo, e acho que me apeguei à ela sem hesitar. Qualquer aproximação que não seja da Senhora Solidão me assusta. O que querem eles comigo? O que querem eles de mim? O que vão levar de mim antes de me deixarem só novamente?

Talvez eu a confunda com algumas pessoas às vezes. Passa muita gente pelo meu dia. Gente que eu penso que poderia fazer algo por mim, mas nunca trocaremos palavra alguma, pois não nos conheceremos e nenhum momento social obrigatório fará as honras por nós. Também vejo gente que eu poderia ajudar, mas já estou sem forças para ajudar a mim mesmo; logo, passo por elas sem dizer nada, em respeito a meus próprios problemas. 

Vejo quem ainda está preso nas histórias enganosas que nos contaram no berço. Sinto vontade de clarear seus olhos, mas talvez seja melhor que eles não saibam o que eu sei. Que não descubram o que eu descobri. Depois que se atravessa essa linha, nunca mais se consegue voltar atrás. Tenho saudade de quando eu não tinha consciência de nada disso. Tenho saudade do filtro que me impedia de ver as cores reais do mundo. Cores que estão fora da paleta da Faber Castell. E, ainda sim, não trocaria essa sensação estranha dessa madrugada por nada. 

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