terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Se Negou a Ser Perfeito

Muito falava sobre seus desejos e poucos deveres fazia, de forma que algo bem próximo do desprezo se levantava violentamente naqueles corações próximos. Fazendo com que seus donos fechassem os olhos e ouvidos para algumas realidades, continuava, contraditoriamente, com os protestos que tanto lhe faziam se sentir bem e significativo. Se negou a ser perfeito.
Foto: Quisque
Mesmo com vinte e cinco, ainda havia uma chama adolescente que lutava, dançando, para não se extinguir, embora a constante passagem pelos corredores de galões d'água fosse realmente ameaçadora. Cada dia era um novo desafio, mas ele continuava fazendo cartazes e pregando peças nos soldados. Se negou a ser perfeito.
Ia num fôlego só, dava saltos, criticava as filas e roubava mercadorias de vez em quando, para sentir que estava mudando alguma coisa na sociedade. Fazia parte de um grupo radicalista no qual era feliz, embora sempre discordassem de algum ponto. Mesmo entre eles, muitas vezes se sentia sozinho com suas indagações, que  ficavam presas nos muros do comodismo. Se negou a ser perfeito.
Havia abandonado os livros sagrados: eles não faziam mais sentido. Estava cada vez mais satisfeito com seu próprio pensamento, sabia que nada escrito e nem ninguém que usasse batina teria mais razão do que ele. Em contrapartida, faltava alguma coisa. Se negou a ser perfeito.
Criticou e bateu em muita gente. Apanhou, e doeu mais do que imaginava que iria doer. Seu sangue o fez lembrar de muitas coisas que havia abandonado. Sim, eram coisas ridículas, e sem sentido, eram pura fé. E, àquela altura do campeonato, sentiu falta de ser um completo ignorante desinformado e infantil. Se negou a ser perfeito.
Foi se entregando completamente a uma cascata de arrependimentos e decisões mais assertivas aos olhos dos outros. Ao mesmo tempo em que queria voltar a sorrir nas águas geladas da rotina, tinha a sensação iminente de afogamento a cada novo mergulho. Pensava que não era a forma como queria viver, queria voltar para a superfície, pegar mais ar. Se negou a ser perfeito.
Rasgou alguns de seus antigos textos, queimou a carta de suicídio, largou a navalha e devolveu os remédios de volta ao armário do banheiro. Isso seria perfeito, mas se negou a ser perfeito. A partiu daquele momento, repensou sua existência.
Foi percebendo que há mais universos em cada alma do que estrelas no céu, e mais gelo em um coração do que nos polos do planeta Terra. Também há mais nervos em chama do que raios de sol, e melancolia mais pálida do que a própria lua. Não devia mesmo desistir, tinha que continuar com tudo aquilo que já havia mapeado para si, porém, lembrando sempre de dar a César o que é de César, de contribuir com o ritual obrigatório de oferenda, mas não esquecer de procurar frutas frescas para si. Ainda assim, se negou a ser perfeito, e, assim, passou a viver perfeitamente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário