quinta-feira, 27 de março de 2014

O Careca da Colina - Parte I - A Sala dos Discursos

 A menos tempo do que se possa imaginar, havia um casarão bem distinto no topo da colina. Esse casarão não ficava tão longe da cidade, nem tampouco a colina, porém, era afastado o suficiente para que nem todas as pessoas percebessem a sua existência. De arquitetura eclética, repleta de janelas compridas em arco e detalhes barroco-renascentistas, a edificação já não era tão linda quanto fora há dois séculos.
 Descascada, sem cor e, aparentemente, inabitada, a mansão não faria inveja a ninguém, ainda mais que aquele tipo de construção não representava em nada a sociedade atual, era um tanto quanto ultrapassada. Talvez, dentro de alguns anos, até fariam uma petição para que a casa fosse tombada e, no lugar dela, fosse levantado um maravilhoso shopping. Isso, é claro, na hipótese de alguém lembrar ou notar a existência dela, ali, escondida entre as árvores mais altas.
 Apesar de velha, a casa tinha alguns encantos. Além das rachaduras e manchas de infiltração, havia detalhes sutis de trepadeiras de pedra que davam a impressão de ter crescido despretensiosamente em volta das portas e janelas. Todos esses detalhes se interligavam e findavam em uma única rosa, localizada estrategicamente nos fundos da casa, que, tempos atrás, era uma bela fonte, de onde jorrava água cristalina.
 Esquecida pela cidade e também por seus próprios moradores, a casa envelheceu bem mais do que as árvores e a pele dos que, então, eram idosos nas ruas pavimentadas logo abaixo. Os moradores se escondiam, literalmente, por detrás daquelas madeiras que foram pregadas nas janelas, para que, junto com as cortinas pretas, toda a luminosidade inconveniente do dia entrasse naqueles cômodos.
 Dentro da casa, castiçais de velas, posicionadas em cima dos móveis e, em alguns cômodos, no chão, cumpriam todo o papel de iluminar o caminho, mas só o suficiente para que ninguém tropeçasse. Os muitos pontos amarelos espalhados pelo corredor também subiam as escadas, que davam acesso aos quartos dos três membros restantes de uma grande linhagem já extinta.
 Uô e Uã subiam as escadas rumo ao quarto de seu filho. Era difícil dizer quem era o macho e quem era a fêmea de início, pois ambos eram carecas, pálidos como o luar e não possuíam pelo algum no corpo, nem sequer sobrancelhas. Os dois não conversavam, mas subiam os degraus em perfeita sincronia. Uã levava um castiçal na mão, para poder vasculhar qualquer detalhe particular que desejasse, se preciso.  
 O casal adentrou silenciosamente no quarto do jovem Uê, que fingia dormir profundamente entre seus lençóis. Uã, que conhecia muito bem aquele que fora gerado em seu ventre, pousou a vela na cômoda ao lado da cama do menino e o cutucou levemente, sabendo que ele estava apto a ter uma conversa naquele momento.
 -Uê, já é luz. Lembre-se que hoje é dia de escuro prateado.
 -Sim, geradora, eu sei.
 -Preparou o seu discurso? –perguntou Uô, que, diferente de Uã, percebia quando o filho havia esquecido de alguma coisa.
 -Sim.
 -Está com inverdades. –acusou Uã, que, diferente do pai de seu filho, sabia muito bem quando Uê mentia. –Levante-se, desça conosco para alimentar-se e, depois, gaste toda a luz preparando o seu discurso.
 Uê revirou os olhos, que eram de um azul primário idêntico ao de seus pais. Ele também não possuía pelo algum, e sua pele era branca como as nuvens que ele um dia conheceria.  Contrariado, ele saltou da cama, exibindo uma manta cinzenta amarrada nos ombros, que era o seu pijama.
 Ele olhava para as vestes de seus pais com respeito e um pingo de raiva. Eram trajes longos, elegantes, de um tecido bem raro de se conseguir. Uô vestia tecidos grossos marrons, detalhados com bordas douradas que representavam folhas e plantas. Uã, por sua vez, estava envolta em tecidos mais suaves e delicados e seus detalhes de plantas prateadas eram igualmente bonitos. Uê não tinha idade o suficiente para vestir aqueles tecidos e detalhes dourados e se odiava por isso. Porém, tinha que admitir que parecia bem mais confortável usar os trapos cinzentos que lhe eram conferidos.

 Na tarde que se fez, Uê ficou sozinho em seu quarto, com um pedaço de carvão em uma mão e um pergaminho liso em outra, tentando pensar em algo para poder ler em seu discurso de novo luar. Entretanto, ele só conseguia pensar em coisas vagas, como pedras nunca antes vistas que encontrara em uma caixa esquecida debaixo de um móvel do saguão, o dia em que tropeçou na escada e um líquido estranho de azul primário escorreu de seu joelho esquerdo – esse dia, inclusive, foi marcante, pois tanto Uã quanto Uô esboçaram expressões nunca antes vistas por ele, enquanto enrolavam seu joelho azulado em tecidos e folhas com propriedades cicatrizantes.
 Uê tirou todos os tecidos, linhas e bolas de vidro que ficavam em cima de seu criado mudo e colocou tudo com delicadeza em cima de sua cama. Depois disso, subiu no móvel e ficou observando o pegaminho em branco com a luz da vela que retirara do chão e colocara a seu lado. Ele esperava que seu discurso se fizesse sozinho, mas isso certamente não aconteceria.
 Cansado de tentar buscar conteúdo de onde não tinha, ele simplesmente pegou o carvão e, num ato quase brutal, fez um grande rabisco no papel.  O rabisco tomou formas interessantes, porém, incompreensíveis, que não ficaram tão simétricas quanto poderiam, já que, para realiza-los, precisou usar sua própria coxa como apoio. Satisfeito com o que fez, ele desceu do móvel, deixou o carvão em cima do criado mudo e, depois de estar segurando o pergaminho em uma mão e a vela em outra, rumou para fora de seu quarto, rumo às escadas.
 Ele desceu até o saguão, depois foi até uma porta no fim do cômodo, aquela que era a única que não estava acompanhada por dezenas de velas postas em cima de móveis sofisticados. Ele entrou, então, na Sala dos Discursos, local que só podia visitar uma vez por ano, embora seus pais não soubessem, ou, pelo menos, não desconfiassem que ele costumava aparecer lá por mais vezes. Uã, é claro, descobriria essa travessura caso perguntasse à ele se obedecia religiosamente aquelas restrições de conduta, porém, como ela nunca demonstrara tal indagação, o segredo continuava à sete chaves.
 A Sala dos Discursos era, sem dúvida, o local mais bonito do casarão. No teto, que era de um azul tão escuro quando os momentos escuros, pendiam linhas douradas e prateadas, que findavam em pontos cintilantes que representavam os ancestrais. As paredes, de um marrom perfeitamente negro, eram marcadas por detalhes em bronze de folhas e flores. Uê, apesar de nunca ter dado um passo sequer para fora do casarão, sabia o que eram as folhas, já que a Sala dos Discursos estava repleta delas no chão.
 Cada passo que Uê dava representava um ruído peculiar nas folhas, que, de tão secas e velhas, se desintegravam com facilidade. Entretanto, mesmo que ele estragasse muitas folhas cada vez que pisava naquele cômodo especial, ainda haviam muitas outras para pisar, e parecia que elas nunca acabariam. Contudo, Uô admitiu, certa vez, que a Sala dos Discursos não era mais tão coberto por folhagens como antigamente, o que deixara Uê, à época, com certa melancolia.
 Como fazia todo o ano, Uê caminhou até o centro da sala e esperou, em silêncio, a aparição de seus progenitores. Ele segurava seu discurso de um jeito qualquer, enquanto o suporte com vela estava firmemente entre os dedos de sua outra mão. Ele ficou ali por um longo momento, olhando par ao chão, tentando distinguir quais folhas eram marrons, quais eram levemente verdes e quais eram as raridades roxas das quais tanto gostava.
 Logo, um monte de folhas se formou no fim da ampla sala e dele emergiu Uô, que usava um traje cerimonial que continha uma grande quantidade de folhas na gola e nas mangas compridas. Uô não sorriu, como costumava fazer naquelas circunstâncias, apenas ficou ali enquanto, do alto, alguns fios brilhantes desciam até tocar o chão. Uê viu, um tanto entediado, quando sua progenitora Uã surgiu dos brilhos cintilantes dos fios, que depois voltaram ao seu comprimento normal, abandonando-a no chão.
 Uô e Uã caminharam um até o outro, até que seus caminhos se encontrassem no centro da sala, ambos ladeando seu filho Uê. Uô olhou fixamente nos olhos iguais aos seus de Uã e, como sempre, fechou os olhos, iniciando a cerimônia.
 Uã também fechou os olhos e Uê sabia que também deveria fechar. Entretanto, ele queria ver o que acontecia, de fato, enquanto eles estavam de olhos fechados. Casara de obedecer àquelas tradições mecanicamente, sem refletir sobre elas e, desta vez, não fechou os olhos. O que viu a seguir foi uma das coisas mais inacreditáveis que já presenciara em sua existência. A sala foi tomada por uma luz de uma cor que ele nunca vira, uma cor quente e totalmente diferente de todas aquelas que integravam a sua paleta da memória. A cor vinha de todos os lados, de cima, de baixo, das laterais, ela entrou nele e em seus pais sem aviso prévio e, quando percebeu, os três estavam flutuando junto às folhas. Como sempre Uô e Uã deram as mãos ao filho, a diferença é que, desta vez, ele conseguia ver as mãos e todos estavam em cores diferentes, haviam deixado de ser pálidos, estavam todos radiantes e ele sorriu de uma forma espontânea, quase que criminosa.
 Quando percebeu, Uê estava no chão e abrindo os olhos. Na verdade, não havia reparado que fechara os olhos em momento algum, mas, de repente, estava novamente escuro, ele apenas conseguia ver os pais porque havia velas de brilho amarelo nos cantos da sala.
 Uã olhou para seu filho com uma rigidez bem conhecida por ele. Certamente percebera que ele não havia fechado os olhos, que ele havia visto aquilo que não devia e, mais tarde, seria o momento de sua punição. Talvez fosse obrigado a ficar no escuro total, sem a presença de velas, por três luzes, ou algo do gênero, mas aquele não era o momento de decidir aquilo e logo ela voltou o olhar para Uô, pedindo para que ele prosseguisse com o ritual.
 Uê ficou constrangido quando o pai tirou das vestes um pergaminho lotado de anotações filosóficas e existencialistas e começou a ler, em voz alta, para que o processo de transição corpórea fosse concluído. Ele dizia coisas tão belas, tão inteligentemente pensadas e escritas que Uê se sentia um grão de poeira ali perto dele. Jamais seria como ele. Ao mesmo tempo em que sentia algo próximo da inveja e algo não tão distante da vergonha, Uê também não ouvia direito o que o pai dizia, conseguiu distinguir apenas a passagem, que ficou repetindo estranhamente em sua cabeça segundos depois.
 “...pois a luz nos cria para que saibamos viver na ausência dela, e não o contrário...”.
 Ele percebeu que aquele fora o fim do discurso de seu pai apenas quando sua mãe começou a ler o dela, igualmente bem escrito e bem lido naquela voz suave e de uma rigidez perceptível apenas quando somada a seu olhar profundo.
 “...que a sombra nos conforte quando a luz não mais o souber fazer...”, e esse foi o único trecho que Uê conseguiu distinguir dentre a tanta filosofia, graça e inteligência de sua amada progenitora.
 Infelizmente aquele também foi o fim do discurso de Uã e ele soube que devia começar o seu quando seus pais começaram a encará-lo com aqueles olhos de um azul primário, tão reconfortante quanto intimidador.
 Uô sabia que Uê não havia esquecido de fazer seu discurso, e estava feliz por isso, embora não sorrisse, já que aquele era o momento mais importante do ciclo. Uã também estava feliz, já que, apesar do jovem ter aberto os olhos durante a iniciação, ela sabia que ele não estava mentindo: tinha feito sim algo em seu pergaminho neste ciclo.
 Uê, completamente arrependido de não ter feito nada descente com seu pedaço de carvão, estendeu o pergaminho em um gesto temeroso e, ao mesmo tempo, sincero de sua estupidez. Uô e Uã levaram um grande susto quando viram a folha rabiscada do filho – expressão esta que Uê só vira no dia em que seu joelho havia jorrado de azul.
 Uô se jogou violentamente para um canto da sala, enquanto Uã caiu para o outro. Algo além da compreensão de Uê estrava acontecendo e, quando menos percebeu, ele também havia caído, para trás. Uma luz, bem diferente daquela que havia engolido a sala momentos antes, derrubou parte da parede da sala e invadiu o chão de folhagens, fazendo-as adquirir cores mais claras, como verdes e tons alaranjados.
 Uê viu, de relance, uma criatura muito, mas muito pequena atravessar a luz. Ela tinha um formato cilíndrico, parecia, e um par de asas imóveis. Logo, a criatura sumiu, como se só existisse durante sua passagem pelo ponto luminoso e, depois disso, havia se desintegrado.
 Uô, assim que pôde, colocou-se de pé e, mais rápido do que seria possível descrever, saltou até o ponto de luz que vinha do alto da sala, tampando-o com o corpo e as vestes. Uã fez a mesma coisa e os dois ficaram suspensos e abraçados por um momento no alto da sala, transmitindo expressões de muito sofrimento. Tocando partes da construção, os dois conseguiram, enfim, fechar o buraco que fora aberto pela luz externa e, ao perceberem que era seguro, pousaram nas folhas, respirando aceleradamente na mais total escuridão.
 Uê percebeu só naquele momento que todas as velas haviam se apagado e, talvez se os pais não fossem tão brancos, seria impossível enxerga-los. Uô segurava o ombro de Uã e observava uma das mãos da fêmea com preocupação e interesse. Ela também parecia atordoada, mas demorou muito para que os dois voltassem a encarar o filho. Quando o fizeram, Uê saiu correndo, deixou a sala e se trancou no quarto.  

 Depois de longas horas, luzes e escuros, na mais absoluta penumbra, punição que o próprio Uê dera para si, o jovem foi surpreendido pela visita de seus pais, iluminada por um castiçal de velas cada um.
 -Devemos falar do incidente. –informou Uô. –Não se desmemorie.
 Uê se pôs de pé, com suas vestes cinzentas, para encarar os pais, de vestes marrons e azuladas, com detalhes brilhantes.
 -Não quis fazer.
 -Sei. –respondeu Uã, que sabia que era verdade, mas, nem por isso, abandonou a expressão séria. –Sabemos.
 -Não sou como vocês. –disse ele. –Sou bastardo.
 -Talvez. –disse Uô, também severo.
 Uê baixou os olhos, incapaz de olhar para os pais.
 -E talvez isso seja um sinal. –acrescentou ele.
 -Sinal? –questionou Uê. –Do universo?
 -Certamente. –disse Uã, agachando-se ao lado do filho, para olhar bem de perto seus olhos. –Absorva.
 Ela ergueu o punho branco esquerdo e, com o indicador direito, mostrou uma queimadura. Uê ficou boquiaberto, aquilo acontecera, certamente, por causa da luz que invadira a Sala dos Discursos. Era um sinal. Um terrível sinal, para ele.
 -Sinto muito.
 -Não sinta. –disse o pai.
 -Mas isso não ocorre há...
 -Muito. –completou a mãe.
 -E se eu... falhar?
 -Não irá. –disse o pai.
 -Sei que sim.
 -Não sabe. –falou a mãe. 

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