domingo, 24 de agosto de 2014

Mais Um

Há muito tempo ele nasceu. Na verdade, nem tanto tempo, mas um tempo considerável desde o seu nascimento. Isso queria dizer que ele já tinha que, obrigatoriamente, ter algumas noções sobre o mundo. Por exemplo, tinha que saber que não era saudável ficar na chuva por mais do que duas horas, pois podia, assim, ter uma hipotermia, tinha que saber que a vida não era só a alegria de degustar um potão de sorvete de vinho com abacaxi e que não era possível nem morrer sem gerar gastos de enterro ou crematório, mesmo que não fizesse diferença ter ou não esse investimento mesmo depois de morto.

Foto: Quisque
No entanto, aquele cara a quem chamavam de Mais Um não se sentia como mais um no mundo. Era órfão e não sabia como sair do topo daquele prédio depois que ocorreu o terrível naufrágio de sua cidade, matando todas as pessoas respeitáveis e perfeitamente adultas de sua cidade. Não era só órfão de pais, mas também de colegas, amigos, e vizinhos, que, na verdade, nunca foram seus colegas, amigos e vizinhos, mesmo sendo. 

Ele olhava para o céu e encarava o sol como se fosse um Deus a ser reverenciado, e talvez fosse. Tinha inveja dele, pois ele estava ali, suspenso no universo, e não tinha que resolver problemas horríveis, como sair daquele prédio quase totalmente submerso, com a exceção da cobertura onde o órfão imaturo se encontrava. Ele pensou em nadar, mas se lembrara que uma vez quase se afogara tentando. Pensou em saltar até outro prédio quase que totalmente submerso como aquele, e ir pulando de cobertura em cobertura até chegar em uma cidade que estivesse menos inundada que aquela, ou que tivesse algum sobrevivente, mas lembrou-se de que, meses atrás, quando tentara saltar sobre uma poça e outra, acabara molhando a barra de suas causas de um jeito deveras desastroso, e acabara passando vergonha da frente de férias pessoas respeitáveis e de smoking quando chegara molhado em uma festa social. 

Mais Um pensou, por fim, em pedir ajuda. Gritar até não poder mais para, quem quer que fosse, ouvisse e viesse em seu socorro. Porém, ele não queria que quem quer que fosse pensasse que ele não era capaz de sair de lá sozinho. Então, ele desistiu dessa ideia e ficou lá. Por muitos anos.

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