segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A Herege

 Outra sempre a mais bonita, talvez porque sorria sem culpa. Uma sempre a mais devota, talvez porque não deu tempo de ser outra coisa. Outra sempre se divertindo, Uma sempre rezando. Outra sempre em romances, Uma virgem até segunda ordem. Uma nunca olhava para a cara de Outra, pois ia contra seus princípios. Outra oferecia um batom para Uma, mas a irmã recusava toda vez. 

Foto original: Di Ba Artes
 Certa vez Outra decidiu chamar Uma para um passeio com seus amigos. Uma sabia que seus pais não tinham julgado aquilo uma boa ideia e que desprezaram o comportamento de Outra e, portanto, declarou o mesmo que eles declarariam. Outra, em parte desapontada, saiu e não voltou mais, nunca mais.

 Uma viveu feliz, a seu modo, ao longo dos anos. Foram tristes as perdas e felizes as conquistas. Dinheiro suado em costuras, investido em cicatrizações de culpa. Pais mortos, marido e filho vivos. Uma não queria outra vida, mas sabia que marido e filho tinham que se adequar à sua e, por isso, desde cedo, os convidou de bom grado a frequentar as Quatro Paredes da Salvação.

 Para a devota que era Uma, os dois decidiram fingir que por prazer a acompanhavam até o local praticamente todos os dias, mas a verdade é que não concordavam muito com as imposições daquela comunidade. Enquanto o marido escondia um passado sombrio de visualizações do corpo humano em atos condenatórios, o filho adorava ilusões digitais repletas de conflitos de espadas e sangue. Era dever de Uma salvar aqueles dois.

 A felicidade verdadeira, era o que Uma descrevia de sua vida, apesar de tudo. Todos a admiravam. Todos, é claro, os que seriam salvos também, pois, quanto ao restante, Uma nem ao menos orava por eles. Eram hereges mesmo, não adiantava ter compaixão. Seriam, um dia, julgados por suas crenças e descrenças. Por isso, era ela quem mandava na casa, e marido e filho, por amarem tanto aquela mulher, a obedeciam. Pelo menos quando estava perto de Uma.

 Certa vez um condenado tentara hipnotizar Uma com suas bruxarias, falando sobre absurdos como igualdade, respeito e amor, mas ela sempre estava preparada para lidar com esse tipo de demônio e fugiu antes que fosse tarde demais. Ela, inclusive, comentou sobre o ocorrido com outros frequentadores d'As Quatro Paredes da Salvação, que tiveram a decência de correr atrás daquele maluco que carregava um violino e destruíram habilmente aquela ferramente infernal. 

 Entretanto, um dia, onde tudo corria perfeitamente bem depois de uma visita às Quatro Paredes da Salvação e enquanto o jantar borbulhava na panela, Uma ouviu alguém bater na porta. Para a surpresa dela, Outra estava diante de seus olhos e abriu os braços para a irmã, com um sorriso dissimulado e profanador. Uma não tinha irmã desde que ela fora roubada por uma entidade que ela nem ousava pronunciar o nome, aquela devia ser uma grande alucinação do enxofre, obviamente, então, Uma fechou a porta antes que aquela criatura invadisse sua casa.

 Para se proteger, Uma começou a fechar todas as portas e todas as janelas da casa, trancafiando-se na cozinha. Tremia com medo do que viria a seguir. A voz de Outra insistia para que Uma abrisse a porta, oferecendo-lhe torta de conhecimento em forma de chantagem. Logo aquela fruta, a pior de todas.

Seu marido não estava em casa. Seu filho estava com ele. Ambos iam comprar mais alimentos para adicionar à sopa que borbulhava alarmante no fogão. Pobres coitados, mal sabiam do perigo que os aguardava à porta.

 Três batidas bastaram para que Uma explodisse em desespero. Ela retirou a panela do fogo e ficou segurando-a com os braços trêmulos, com a intenção de se defender de um possível e quase certo ataque demoníaco. Enfrentaria fogo com fogo.

 A porta se abriu e duas carcaças familiares estavam ao lado da maldade da falsa Outra. Todos de mãos dadas, insistindo para que Uma deixasse de ser tão rígida. A criatura tinha conseguido passar seu marido e seu filho para o lado dela. A batalha estava perdida. Uma tinha certeza disso. A partir daquele momento, ambos eram hereges também, não mereciam mais, ela sentiu imediatamente, compaixão. 

 Em nome de algo maior, Uma despejou violentamente todo o líquido fumegante nos três, que gritaram, se debateram e enfim foram silenciados e derretidos para sempre. Os monstros estavam mortos e prestes a serem julgados e Uma, mesmo  triste, sabia que tinha feito o que qualquer um que frequentasse as Quatro Paredes da Salvação faria.  A poça nojenta de sopa e corpos distorcidos formava a imagem de uma pomba de asas abertas no chão, parecida com a dos vitrais d'As Quatro Paredes da Salvação, mas Uma nem chegou a notar isso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário